As pregas de tia Antonieta

Bem pequena, lá pelos quatro, cinco anos de idade, quando meus pais iam visitar tia Antonieta, ficava eu meio apalermada olhando as pulseiras balançarem nos braços da tia de minha mãe. Nunca tinha visto antes uma mulher mais velha usando tantas pulseiras e fazendo tanto barulho ao gesticular italiana enquanto  — contraditoriamente  — falava mansa e calmamente, contando casos a que eu nem prestava atenção, distraída que estava com as pulseiras e o tilintar estranho.

Na época, também me intrigava a pele branca, muito branca, da tia-avó. Igualmente causava estranheza os cabelos reunidos num coque que me parecia saído de fotografia antiga. Da figura alta, esguia, imponente até, meus olhos apenas retinham a brancura, o coque e... as pulseiras. Essas eram o prolongamento físico e sonoro da tia.

Mais crescida, entre os nove e doze anos, quando ia com minha mãe visitar tia Antonieta, as pulseiras continuavam a atrair mais a atenção do que qualquer outra característica sua. No entanto, comecei a reparar que, junto com as pulseiras, balançavam também pregas de pele, como nunca havia visto em velho algum. E me confundia entre pregas e pulseiras, sem ainda enxergar direito uma pessoa por inteiro. A tristeza, o vazio e a solidão da casa em que morava oprimiam o peito e sentia uma aflição estranha, que se acentuava insuportavelmente quando surgiam duas parentes bem mais novas, brancas e secas, parecendo seres que viviam a mil léguas de distância da vida. Na casa escura e séria, o tempo havia parado no século anterior e apenas as pulseiras da tia-avó eram ponteiros de um relógio lento, que marcava as horas em outro compasso.

Mas foi nessa época que meus ouvidos tolos se abriram um pouco para as histórias da ancestral. Mesmo assim a memória apenas retinha só fragmentos: tia Antonieta se casara com doze anos e brincava de boneca às escondidas, enquanto o senhor seu marido estava trabalhando. Contava que, à tardinha, quando ouvia os passos do homem na calçada, guardava apavorada as bonecas, morrendo de medo de que ele a visse brincando.

Nessa fase, depois de me despedir, carregava como lembrança da tia-avó, além da brancura, do coque e das pulseiras, as pregas balançantes do braço e a sombra longínqua de uma criança brincando escondida do marido. E criança poderia ter marido?

Da pessoa alta, esguia, digna; da mulher que vivera e sofrera  — e que poderia me ensinar muito  — ainda não guardava nada.

Depois, em plena adolescência, ia visitar, com minha irmã e minha mãe, a tia Antonieta. Na época, ela estava morando em outra casa: mais simples, mais acanhada, mas menos escura e pesada. Eu chegava muito arrumada, esbanjando juventude e  — diziam — beleza e elegância (herança?). Ruidosamente estacionava o carro e a pressa de quem não tem tempo a perder. No entanto, o quanto desocupada era eu! Meu pai é que estava sempre trabalhando para  — e eu nem sabia  — sustentar o carro, as roupas caras e os dias completos de à toa. A mãe, a irmã, eu e às vezes uma velha amiga de minha mãe passávamos as tardes percorrendo as estradas para irmos comprar queijo a cem quilômetros de distância, rodar por todas as butiques da região e... não fazer nada. Era então que nos lembrávamos (ou minha mãe se lembrava?) de “visitar” tia Antonieta. Entrávamos e lá estava ela num quartinho minúsculo e muito modesto. As pulseiras continuavam o balanço, mas o que realmente se agigantava diante de minhas retinas eram as pregas, as milhares de pregas, que agora me apavoravam profundamente. Era como se a pele branca de minha tia-avó escondesse, entre as pregas, a cruel e inútil passagem de tempo aqui na terra. Apesar da aflição, ainda presente como antes, procurava ouvi-la e voltava a saber que ela se casara aos doze anos, brincava de boneca às escondidas, etecétera , etecétera , etecétera ... ah! e tinha tido um filho, único, filho que se perdera no passado (morreu?). O homem, um médico, me parecia um desnaturado. Dezesseis anos e julgamento rápido são bons companheiros. De qualquer maneira, Moacir (era esse o nome dele) se manteve sempre em minha lembrança como um boneco a mais na história da tia. E o marido também. Embora sem muita animação, minha mãe conversava bastante com tia Antonieta, talvez por terem partilhado um passado comum.

O tempo foi passando mais e mais rápido. E a tia, embora viva, se foi de minha vida. Às vezes, ouvia uma ou outra notícia dela, mas não detinha meu ritmo agitado para pensar na velha ascendente.

Tudo foi mudando cada vez mais depressa. Casei-me, tornei-me mãe. O casamento entrou em erupção vulcânica e extinguiu-se. Morreram o pai, a mãe; desfez-se a casa (a deles) em que vivi protegida e burguesa. De positivo, ficou-me uma filha, junto com a vontade férrea de lutar por mim e por ela, abrindo-lhe e a mim caminhos novos. Nada do conforto burguês. Apenas o mundo e as mãos para desbravá-lo.

E tia Antonieta se transformou, em minha memória, em pregas, muitas pregas de pele, balançando nos braços juntamente com pulseiras, muitas pulseiras tilintantes. Houve uma época em que não sabia sequer se ela estava viva ou não.

Só voltei a me lembrar da ancestral numa noite em que, já deitada em minha cama, ergui os braços para apagar a luz e... as pregas... as pregas de pele lá estavam nos braços. Entrei em pânico. De onde vieram trazendo a velhice? Eu não era nova ainda?

Não. Eu não era nova mais. No mínimo um quarto de século havia se passado e não me dera conta disso. E as pragas  — ato falho! — as pregas começavam a baixar uma cortina de veludo negro sobre meu corpo.

Tia Antonieta já morreu. Aliás, tia Antonieta já havia morrido há muito e muito tempo, enquanto eu não tinha tempo sequer de estacionar minha pressa para uma rápida e superficial visita a ela.

Hoje ando por aí perguntando a um e outro parente mais velho sobre a vida da tia-avó. Dizem isso, dizem aquilo e nada me trazem de muito novo sobre a ancestral.

Ela passou por mim e deixou apenas as pregas de pele e as pulseiras fixadas. O tempo deu conta de fixar pregas também em mim. Isso me apavora, isso me dá medo de estar sendo uma tia Antonieta na vida de algum descendente.

Márcia Carrano

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