Cotas

A escola das cotas, na ocasião adequada, dispensaria a universidade das “cotinhas”. Se esta faz favor aos injustiçados, aquela apenas respeitaria seus direitos. Dessa maneira, a sociedade brasileira não se dividiria, dentro das universidades, entre os discentes que foram ajudados e os que consquistaram espaço por empenho próprio. No entanto, se ainda não há justiça para os brasileiros na fase inicial da vida escolar, que continuem a existir as cotas no tempo que for.

Obviamente, não há equanimidade no fato de chamar pessoas para o final da festa e servir o que restou. E a lei das cotas, como é atualmente, serve apenas como paliativo para amenizar a situação de estudantes que não tiveram considerado — antes! — seu direito a educação de qualidade. Além disso, serve como forma de tranquilização equivocada de brasileiros conhecedores da necessidade premente de termos sociedade inclusiva e menos injusta, o que contribui para  manter como permanente o provisório. Muitos poderão dizer que as estatísticas vêm mostrando que os cotistas têm se saído muito bem academicamente. Mas quanto sangue e suor custa a eles isso? Além do mais, é imprescindível nos lembrarmos de que não atacar adequadamente as causas de problemas só os faz ganharem força. E, enquanto não conseguirmos atingir o cerne da questão, precisamos respeitar o direito de os excluídos se iniciarem no caminho do saber juntamente  com os outros, os privilegiados de todos os tipos, numerosos nesta nossa sociedade perversa que se vale de inverdades na tentativa de mascarar sua indiferença. Começando a corrida na largada, a aquisição de conhecimento lhes exigirá esforço semelhante ao que também despendem os demais. Assim não perderão a oportunidade de usufruir do que lhes cabe por direito.

Portanto, sem entrarmos na questão das indispensáveis creches, cuidemos de oferecer cotas desde o primeiro ano do ensino fundamental. E o processo deve ser o mais abrangente possível. Não se deve ceder às ruas o poder de destruir nossas crianças: o lugar delas é na escola. É dever de todas as instituições protegê- -las para que possam, por mérito próprio, trilhar, com tranquilidade e apoio, o caminho que lhes pertence, por ser o de todos os nascidos neste país.

Além de darmos conta de os professores se formarem adequadamente para se transformarem em profissionais competentes, remunerados dignamente, motivados para ensinar e educar, precisamos rever a questão das escolas, tanto as públicas quanto as particulares. Se as públicas federais costumam ser de qualidade, também as estaduais e as municipais devem se equiparar a elas. Quanto às particulares, precisamos nos valer delas, principalmente das confessionais, para acolhermos os que foram banidos e expoliados — e continuam sendo. Ricos, pobres, negros, pardos, índios, excluídos e não excluídos devem conviver nos mesmos espaços e ter as mesmas oportunidades. E lugar algum é melhor para isso que o das escolas. Sem dúvida, é como estudantes que, na maioria das vezes, começamos amizades que durarão por muito tempo, às vezes vida inteira. Já houve época em que o companheirismo nas salas de aula desconhecia as diferenças raciais e sociais, pois crianças e jovens, quando se juntam, acabam — pelo menos —  por se tolerarem. Esse seria passo inicial para combate aos preconceitos e para a luta contra a maléfica desigualdade social. No entanto, se as escolas particulares não participarem do processo, difícil será concretizar esse ideal, que pode parecer utópico, contudo é realizável. Não existe a lei de incentivo à Cultura e aos Esportes? Por que não uma lei de incentivo à Educação? Além disso, por que não vincular a atual isenção de impostos para igrejas em geral ao que possam oferecer, em contrapartida, para ajudar no acolhimento e na inclusão de crianças, desde as creches até o término do ensino fundamental?

Indubitavelmente, precisamos repensar a questão das cotas: leis podem e devem ser modificadas para serem mais justas. Igualmente precisamos rever o que representa interferência indevida e o que é de fato colaboração desinteressada, quando se discute e se quer modificar a educação brasileira. Quem vive a escola como parte essencial de sua vida enxerga bem como alguns usam esse espaço para se exibirem e se precipitarem na apresentação de soluções mágicas. Há um “notório saber” ameaçando a cátedra: do vereador ao presidente, do filósofo ao banqueiro, do padeiro ao empresário, do advogado ao médico, todos sabem o que é melhor para o ensino brasileiro. No entanto, andam se esquecendo de que existem os profissionais dessa área  — e que sejam ouvidos, e que assumam o seu lugar, e que façam respeitado o seu ofício.

Em suma, a escola com que muitos de nós, educadores, sonhamos não é aquela que oferta aos excluídos, como favor, apressada formação acadêmica no final da jornada, no apagar das luzes, mas a que represente lugar de conjunção de amor, liberdade e respeito. E, na grande Escola da inclusão, esses bens indeclináveis pertencem a todos, do princípio ao fim da vida escolar. Se assim for, teremos uma universidade sem “cotinhas”, por ter cada um recebido  — no tempo certo — a cota que lhe é devida não como esmola, mas como direito. A tarefa é complexa e torna-se necessária a ajuda de toda a sociedade, no entanto sem jamais prescindir de professores e educadores. Para evitarmos lamentos tardios, estejamos atentos a Drummond: Chega-se a um ponto em que convém fugir menos da malignidade dos homens do que da sua bondade incandescente. Por bondade abstrata nos tornamos atrozes.

Estejamos, pois, cientes de que as cotas, no tempo certo, são um direito sendo respeitado, sem a pirotecnia de gestos apenas bondosos e condescendentes, que representam mais afirmação de superioridade e prepotência. Estejamos também cientes de que os profissionais da educação não podem se omitir na luta por uma escola brasileira de excelência, porque isso seria tão ou mais pernicioso que interesseiros fazerem da escola palanque para suas ambições não pertinentes com as reais necessidade de docentes e discentes.         

                                                                                    Márcia Carrano                                                                                                                            

 

 

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