Sem salvação

           Com pouco tempo de casados, já havia nascido o primeiro filho. O amor insosso que sentia pela mulher ficou ainda mais assim-assim, nem lá nem cá. Mas ele ia levando: não era homem de sair por aí à cata de paixões. Desde bem cedo, não quis ser como o pai, Aderbal Silva dos Santos Marques. Deus me livre de ser rude e bruto como ele, um coronelão. Interessante que quase todos gostavam do fazendeiro rico e temperamental, invencível no voto. Mas o filho não. Aristides achava o pai... A franqueza, a coragem e a capacidade de julgamento justo, que até os inimigos do Aderbal elogiavam, essas o filho nem via.

           De tanto afastar as semelhanças com o coronel, Aristides tornou-se um mais ou menos de pessoa. Não falava alto nem baixo. Não ria nem gargalhava. Não era rico nem pobre. Nem bonito nem feio: magro (sem exagero), cabelos sempre gelizados (não suportava fio algum caindo na testa), olhos inexpressivos. Vestia-se sempre em tons de cinza ou bege. Porém doutor Aristides Marlere dos Santos Marques — como o pai — era homem respeitado. “Moral ilibada” — nele eu confio. A voz parecia unânime, embora jamais chegasse a dar popularidade ou votos ao médico. Também ele não queria saber de política!

           Estamos nos afastando da história que quero contar para você. Sei lá.  Acho que ela me arrepia por demais! E se o fato ganhar novas pernas... se repetir? Mas não vou fugir do assunto não. Volto lá!

            Com pouco tempo de casados, já havia nascido o primeiro filho. A mulher, Rebeca, logo se mostrou uma vaca leiteira das melhores. No princípio, amamentava Humberto quase chorando de dor, por causa dos peitões estourando de líquido. Iam virar pedra? Mas que nada! Os bicos do peito só inflamaram. De dar febre. O Humbertinho lá sugando, ela chorando, porém aguentando firme. E carinhosa! A valentia de Rebeca apodreceu ainda mais o amor de Aristides por ela. Aliás, volta e meia, a morena lhe lembrava o pai: apaixonada, atraente, verdadeira. Temperamental. Isso amolecia o desejo de Aristides. Se fosse mais sossegada, quem sabe as coisas funcionariam? Muito quente, fogosa, alta, corpo morno. Tinha carne, mas tudo no lugar certo. Quando conheceu Aristides, foi logo dando em cima e relando de frente. Ele caiu no calor dela sem nem mesmo perceber. Surpresa foi saber, algum tempo depois, da gravidez de quase quatro meses. Porque ela escondeu direitinho. Isso escondeu. Achava que, sabendo muito no principinho, Aristides ia querer que tirasse o filho. Assim com a barriga começando a aparecer... ah! ele não era doido! Quando contou, o rosto dele crispou-se; mas as palavras, as do bom senso. “Precisamos ver como ajeitar as coisas. Avisar pais. Marcar casamento. Alugar casa.” Rebeca pendurou-se no fascínio das palavras — e fez que nem viu rosto de espanto.

           Já vou eu outra vez pra longe do que quero contar. Falei pra você agora há pouco que palavra me dá medo? É. Falar a palavra chama a alma dela. Porque palavra tem alma. É.. mas vamos voltar. Pode deixar. Volto direitinho.

            Com pouco tempo de casados, já havia nascido o primeiro filho. Era aí que eu estava? Pois é. Agora já dá pra entender por quê, não é mesmo? Acho que Rebeca e Tide tinham uns quatro meses de casamento quando o Bertinho nasceu. Mais ou menos. Mais ou menos como falei do Aristides, lembra? Estou fugindo outra vez — e me atrapalhando com as palavras. Mas vou contar, preciso contar, só posso contar. Nada me resta, a não ser o que posso falar.

            Aristides e Rebeca moravam numa casa de estilo moderno, construída por eles. Toda de acordo. De acordo com quê? Ah! isso não sei não. Eram uns oitocentos metros de terreno e, bem no centro dele, aquele casão. Dava gosto ir lá: cada móvel bonito de arrepiar. Compraram no Rio. Loja chique de Ipanema. Aristides queria fazer tudo numa fábrica de Arioca, mas a mulher não deixou barato. Além do mais, àquelas alturas, Tide já estava bem mudado em questões de vaidade. É, pensando bem, já nem sei se ele continuava o mais ou menos de antes. Teve até, menino, uma história... uma outra história... história de...

            Foi o seguinte: Rebeca tinha uma empregada. Que empregada! Bela que nem... meu Deus, que fêmea! Rosto anguloso, olhos rasgados, lábios carnudos. E o corpo... o corpo, menino, era de tirar fôlego de qualquer homem. Sinuoso, carnudo, gostoso mesmo, e se mexia provocante quando ela andava. Dentro de casa, da sala pra cozinha. Da cozinha pros quartos... a casa ficava parecendo uma passarela e o vaivém da moça deslumbrava qualquer um. Só Rebeca não via.  Mulher fina é gente boba nessas horas. São todas iguais: pensam que doutor não gosta de doméstica. Só sei que um dia fui entrando pela casa (tinha esse hábito), chamando pela Rebeca, pelo Bertinho 

            ... e tudo silêncio. Empregado nenhum. Nem o jardineiro. Silêncio esquisito. Continuei entrando. Como não achava ninguém (depois soube que Rebeca havia ido com Bertinho a Lombarde, cidade maior que a nossa; ia muito lá, só pra passear, fazer compras, ir ao teatro, esse tipo de coisa)...

           ...como não achava ninguém, fui até o quarto dos empregados. Na verdade, quarto da Rosa, a tal, lembra? Menino, o que vi não dá pra esquecer. Volta tudo na minha cabeça. Direitinho. “Haverá alguém aqui?” Chamo mais não! Está esquisito o silêncio. Assalto?!  Prenderam todo mundo no quarto? Barulhinho de quê? Roupa jogada? Onde? Meu Deus! 

                                                      !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

            É ele. É ela. Tide sussurra alguma coisa no ouvido de Rosa. O paletó cinza jogado no chão. Ele vai beijando a nuca, enquanto a mão desce pelo peito dela, que arfa. Quase sinto o coração pulando pra fora. Meu Deus! Tide enfiou os dedos dentro da blusa. Começa a desabotoar com uma das mãos e acariciar com a outra. Os peitos sensuais, volumosos, estão saindo... saindo... um espetáculo. Ele fica macho. Arranca a blusa branca da moça, mas logo depois se esfrega dengoso no meio do morro ondulado. Ela estende os braços longos e as mãos se jogam dentro das calças dele. Vestido ainda... ele. Ela, só de saia, roçando-o com uma intimidade... e as mãos não sossegam... vão pra frente... ele as puxa pra cima e pra baixo... vai se avolumando mais. Agora é ela que arranca as calças dele, as cuecas. Tide fica um gigante assim só de camisa branca e meias pretas. Ele se solta e agarra a danada, vai baixando o fecho da saia, vai baixando, puxa tudo e pula aquele corpão todo: brilhante, quente, morno...

                                                                       _______

 

           Meu Deus! Palavra arrasta, arrasta a gente! Meu Deus! Não contei a história... mas juro que... que... o que ia mesmo dizer?!

                                                                        _______

 

           Jamais disse pra ninguém o que vi. Desgraçar a vida de Rebeca por quê? Saí de mansinho como havia chegado. Ninguém me viu.

            A outra história. Volto lá. Você quer mesmo ouvir? Hum!               

 

            CARRANO, Márcia. In ____. Olhar de espanto. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2013, p. 33-40.

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