Oh abre os vidros de loção

e abafa

  o insuportável mau cheiro da memória.

​                                                 Drummond         

    

 

 

               Pra que inventar moda e correr risco? Passar pela Linha Vermelha, errar caminho e bater numa favela do Rio... quer morrer, é? Esquece que tem filhos, marido, casa pra cuidar?

              Agora que estava ali, sozinha com Deus e o asfalto, bateu um frio no estômago. Se lhe acontecesse alguma coisa? Se lhe imprensassem o carro contra a amurada de concreto? Se algum dos doidos que surgiam do nada nos vãos da Washington Luís se jogasse na frente do veículo? Se errasse a entrada da Linha? Se o carro enguiçasse? Anotar, é preciso anotar todos os telefones de socorro...

              Você nunca teve tempo pra mim? Sempre estudando, escrevendo. Escrevendo o quê? Estudando pra quê? Ganhar dinheiro mesmo, que é bom, nunca lhe passou pela cabeça? E agora, com filho pra cuidar, ainda inventa de se afundar mais nas letras? Pra quê? Por quê?

               Esse doido colado na traseira do carro, é preciso sair dessa loucura... vou errar a entrada... afe, maria! por um triz.

                E o suor se fez na mão gelada.

             Num sente remorso não? É vaidade, é? É o quê? Mania de diploma, é? Pior que nem pendura na parede... serve pra quê? Dinheiro, dinheiro mesmo, que é bom, nada. Tá saturando essa sua... sei lá o quê... fome de letrinhas... é... parece criança comendo biscoito de letrinhas... você já passou da idade, sabia? Pôr em risco a própria vida... morrer de assalto, morrer de bala perdida, morrer de acidente, traumatismo craniano, coisa horrível...

          Agora é só tranquilidade, passar pelo aeroporto, avistar o prédio monstruoso, fantasma de concreto esburacado em esgares. Esgares era o que janelas pareciam. No prédio, haveria vida? Virando à direita e depois à esquerda e pronto, ou quase. Risco de bater na favela, não havia mais não. Isso pelo menos aprendi bem.

              ... pior ainda ser sequestrada, já pensou? hoje não é só rico não, qualquer um pode ser sequestrado... e depois ainda vão exigir resgate. Me explique por que não sossega num canto, numa cadeira confortável, numa beira de piscina se bronzeando pra mim? Não é assim que deve fazer uma mulher que tem marido rico? Mas não, você tem mania de mudar as coisas... de ser diferente... pensei que o tempo fosse te dar sossego... mas não.

             Este sinal vermelho agora, logo agora. Já pensou um revólver apontado pra cabeça, um tiro, o sangue... o que será que uma pessoa faz numa hora dessa?

               E o suor se fez na mão gelada e o olhar do filho se marcou no coração.

            Depois não vai dizer que não avisei, vai ser tarde, você vai se arrepender e vai servir pra quê. Já pensou dar essa tristeza pros filhos? Enterrar uma mãe só porque ela não quis ficar no bem-bom da piscina. Comprei este casão pra quê?

             Custou... sinal aberto. Pra que ficar imaginando coisa ruim? Parar com isso não faz mal nenhum. Afinal, já o trajeto feito mais de trinta vezes e nunca acontecera nada. E hoje terminava uma etapa, a pior. Depois seria diferente, bem melhor, mais animador... Só a entrevista, apenas a entrevista. E nova etapa. Nova vida.

             Cê tá bonita, mãe! A vozinha da filha pequena veio à mente com a sensação gostosa do beijo demorado que ganhara junto com o elogio.

            Já pensou que ainda tem os temporais? A rodovia alagada, os carros sendo levados pela enxurrada. Pessimismo? Não lê jornal não?

 

                                      A pré-entrevista

 

             Afinal em segurança. Entre os pares, nada de marginais, de favelas, de suicidas de última hora. Entre os pares, como Meg lhe acenara. Merecia, ah! se merecia. Quantas vezes adiara um pouco, esse pê de pouco..., na última hora, esse agá de hora, na última hora — e pronto! — desistir, esse dê de desistir. Estupidamente desistir. Agora não! Entre os pares, o pê de pares.

            Num disse?! Estudar demais dá em loucura. Viu o Gil na janela do casarão? Ficou louco, louco de tanto estudar.

           Ficar assim loucamente louca de tanto entender... não... não. Ficar assim louca de tanto entender? Bastava a experiência, a quase camisa de força em que a meteram. Entender é luz, muita luz — e perigo para quem ainda tem corpo. Entrar, fazer a entrevista — caminho aberto. Emprego? O sonho de viver escrevendo e ganhar para viver... escrevendo.

          Num tem vergonha? Mãe de muitos filhos, já pensou? E burra... burra. Cadê dinheiro? o tilinlim... ninguém vive de diplominha, de letrinhas. Criança vive de letrinhas... criança vive de letrinha, marmanjo não. E mulher, mulher casada, marmanjona, não pode se dar o luxo da ingenuidade, percebe? Muito menos esse seu aí, de nobre decaída, de princesa retardatária... mania de deixar o dinheiro pra depois, até o prestígio você, idiota, deixa pra depois. Arre! Todo mundo diz, num sou eu não: “Ela tem a faca e o queijo na mão, não fica rica porque não quer”. Porque não quer não, porque é burra mesmo. Vai salvar a humanidade? Vai? Megalomaníaca intelectual... megalomania de justiça. ARRE! Meu dinheiro acaba, quero ver. De sua sabedoria não sai tostão.

           Era preciso cuidado. De outras vezes lhe haviam avisado: “Não vai, a Malha te pega. Está resolvido, quem fica é a filha do Pazzote, o que morreu mês passado”. E não foi. De outra: “Não vai, a Malha te pega. Está certo, quem fica é Laio. Já resolveram que é a hora do Laio”. Outros e outras... laias e laios mais e menos esperados, tons maiores e menores de um mesmo acorde: não vai. Mas o mundo escrito era a vida, a identidade — achada e recuperada, mil vezes recuperada.

            Sensação de estar virando letra. Me avisaram, não avisaram? Surreal! Alguém abre a porta e diz: “Procuramos por você. Perdeu sua identidade e a trouxemos de volta. Estranhíssimo, mas é preciso resgatar aqueles volumes pesados, os livros que escrevi e perdi – minha identidade. E abandono um recinto, que ressinto?!, e me obrigam a assumir a identidade que negligenciara: volumes e mais volumes de livros perdidos. Maria Antonieta — na França?! — avisara: “Não deixe de escrever. Se o fizer, perder-se-á”. Dissera assim mesmo, com mesóclise e pompas mais. Letrinhas não são assunto de criança: comer letras é antropofagia divina, anterior aos Andrades, originais mas não tanto. Afinal no princípio de tudo era a palavra, a Palavra era.

           Tudo em paz, agora tudo em paz. Nada de loucuras. Tudo acordado, tudo iluminado: “Vá, agora o caminho está livre. Vá!”

              E foi.

 

                                       A entrevista

 

             Mandaram que abrisse a porta, que se sentasse, tentou pegar os óculos para... não houve tempo. Veio o primeiro soco, quase nocaute. Reergueu-se. Afinal tinha dignidade, não ia cair assim de primeiro. Mas vieram outros e outros socos: violência, pura violência. Quis falar, deixavam, só para constar. Não registravam nada, nadinha do que dizia. Voltavam a fazer as mesmas perguntas a que acabara de responder.

           Violência, pura violência. Intelectual. O sangue não correu. O assalto dos marginais da favela não aconteceu. O carro não se chocou contra a amurada. A brutalidade explodiu em abstrato e arrebentou a boca do estômago do mesmo jeito. Ela se desfez em letras desconexas, enquanto gigantescas reticências lutavam para serem pontos finais triplicados.

               Não disse?! Essa sua mania de letrinhas é sua perdição.

 

CARRANO, Márcia. De assalto em assalto. In ____. Olhar de espanto. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2013, p. 55-62.

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