Porção de tintas (contos)
Leila Maria Fonseca Barbosa

Ler e entornar — encher os entornos de ficções e realidades, traçar uma existência a quatro mãos, ir ao fundo do poço para se reerguer com uma porção das tintas da vida que serão lançadas nas folhas em branco — eis a vocação de Márcia Carrano, a professora, criadora de arte.

O livro de contos Porção de tintas demarca quanto a arte literária contemporânea é densa, forte, misteriosa e plena. Assim, puros em sua linguagem precisa, estes contos se destacam, com sotaque peculiar, instaurando o particular no universal, anunciando o trans-real.

As personagens, estranhamente nomeadas, esbarram no limiar do fantástico quando morrem de formas inesperadas, desaparecem, transformam-se em estátuas. E, como bem diz Clarice Lispector: "Viver, amar, escrever, consiste em criar linguagens: criar linguagem é triunfar sobre a derrota, assim como amar e não morrer".

A criação de Márcia carrega em si a mineiridade das invenções rosianas, a dúvida e a angústia de Clarice e, acima de tudo, a limpidez e precisão poética dificilmente encontradas: "Porção de arroz. Porção de carne. Porção de tintas. Porção de amor. Porção de arte. Porção de covardia." É, dessa forma lançado o saber imaginante de uma autora que procura transcender-se. Não para afirmar sua verdade e sim para colocar seu conteúdo como existente através de uma certa espessura do real que lhe serve de representante.

As frases dos contos estão impregnadas de saber imaginante que emana das palavras não como simples significações, mas sínteses de algo que mantém as relações real/fictício. E o saber imaginante, com sua forte tendência a uma intuição que o preenche, escorre pelo sopro revitalizante da linguagem que subverte o desempenho sintático na literatura.

Esta opção pela linguagem na certeza de que ela continuará sendo, mesmo em mundos futuros, o verdadeiro lugar da existência, inaugura uma categoria emergente em que a linguagem como energia, atividade, trabalho, produtividade do sentido, vai além, deslocando as simples palavras e frases ao conceder-lhes um sentido secreto que é mais do que elas. Nietzsche, em Assim falou Zaratrusta,1883, já antevia o contorno agonístico da diferença: "Experimentar e interrogar — é a minha maneira de avançar".

Este é o sinal de acesso ao universo literário de Márcia Carrano, que vai se desdobrando vertiginosamente numa perspectiva temporal não cronometrada por ponteiros de relógios ou dias de calendários, mas arbitrado por flashes da vida cotidiana que vão, em processo invertido, do adulto (partes I, II e III) à criança (parte IV), eclodindo no salto necessário à busca do encantamento (parte V).

Na parte II, irrompe fortemente a ambivalência, a sobreposição de excesso e falta de sentido, o que gera a incerteza e o pânico, quando um símbolo antigo e familiar (o presunto, a perda, o casamento, o barro) engendra um significado estranho em sua retórica performática do imprevisto e imprevisível.

A parte III ressalta os semas da perda, culminando na junção atemporal das temporalidades e no encontro final quando o não-ser passa a ser. E nasce a criança (parte IV), desde logo entranhada nas ambiguidades epistemológicas fundamentais
felicidade / medo, sorriso / lágrima, prisão / liberdade, esperança / fracasso, recebendo da vida marcas indeléveis que invadem e violam até seu espaço mais secreto.

Um futuro distante é prospectado e, em meio a tecnologias frias e implacáveis, permanece a admirável intimidade da autora com as palavras, sempre as adequadas no lugar certo, claras, límpidas, instalando uma narrativa possível de eternidade.

Leila Maria Fonseca Barbosa
Pesquisadora
Mestra em Teoria Literária pela UFRJ/UFJF
Ex-professora da UFJF-Departamento de Letras
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