Pobre ficou rico. Mérito pessoal, pão-durismo e casamento com mulher-razoável-patrimônio. Mas o irmão nem pobre nem rico, megalomaníaco, se meteu em palpos gigantescos de dívidas impagáveis. Ele, Miquia Lamuel, morava na capital, onde seu dinheiro proliferava pelos rios de pães que industrializava. O outro, Rasec, ficou na cidadezinha pequena, onde seus débitos faziam voltas pelas bocas maledicentes, pelos cartórios, pelos botequins, pelos clubes, pelos-pelos e pelos-poros, até se requebrarem em enorme pirueta central na praça do lugar. Mariá ajudava a dar mais belas formas ao monumento: era a mulher de Rasec. Gostava dele, mas vivia envergonhada com os escândalos-furacão que o marido causava. Bonita e elegante, vinha de família nem pobre nem rica. Era honesta e.
Belo dia, quando estava tudo realmente perdido e a falência de Rasec já se repartia em mil pedaços pelos cantos nervosos do lugarejo, um forasteiro surge poderoso, com jeito de fazendeirão, numa supercaminhonete brilhosa. Ninguém mais do que Miquia Lamuel. Ele para na porta da casa dos espremidos Rasec e Mariá. Sem muito falar, pega o irmão pelo braço e.
Na mesícula, talões de cheque; na cadeira tosca mas poderosa, Miquia. Em plena praça central da cidade. Ele mandara colocar aviso nos carros de som que circulavam pelo lugar: “Se Rasec deve a você, venha receber hoje, durante todo o dia, na Praça Paradoxal. Miquia paga.”
Dá para imaginar o ocorrido. Era gente e mais gente. Cheques e mais cheques. Bochichos e mais bochichos. Um chegava e trazia as dívidas de caminhões, carros. RECEBIA. Outros, as de máquinas. RECEBIAM. Mais outros, intermináveis cheques sem fundo emitidos por Rasec. RECEBIAM. Vinham também os que traziam as promessas orais de Rasec. RECEBIAM. Miquia enlouquecera? Não, apenas isto: amor brota tsunâmi no peito num momento qualquer sem aviso. O gesto estouvado e espalhafatoso de Lamuel era também para lavar de vez a honra do irmão, e a sua própria. Em tempo: Rasec só fazia dívidas de negócio. No mais, não bebia; não fumava; não vagabundeava. Só trambicava honestamente.
E a cena grotesca pegou um jeito sutilmente belo no final: a mesícula, a cadeira, a caneta, o cheque e Miquia, chamando o próximo credor. Mais ninguém. Praça lisa. Gente alegre — e silenciosamente espantada. Rasec calmo. Nada a dever. Nada a pagar.
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Voltam os irmãos para casa. Mariá preparara almoço com a venda de pneus velhos. Tudo claro, janelas abertas, cheiro bom de comida feita com carinho. Miquia lava as mãos e comem os três, irmanados num sentimento estranho, misto de amor, coragem, vergonha, covardia, delicadeza, encabulamento e muito mais.
Depois Rasec sai. Mariá ouve música. Leve brisa ameniza o calor do verão escaldante. Tudo paz. Miquia senta-se à mesa recém-tirada. Puxa a cadeira, o talão de cheque, a caneta e:
— Mariá, vá dizendo. Vestidos, roupas, perfumes, o que for. Não estava acostumada com isso de passar aperto financeiro, né?
A mulher, quieta.
— Anda logo, cunhada. Você gosta de perfume importado, de uísque importado. Tanta coisa importada. Diga logo. De quanto o cheque? Ah! e um carro, inclua de uma vez.
Mariá dá um passo em direção à mesa. Senta-se na cadeira em frente à de Miquia, que aguardava caneta na mão e diz:
— Aqui não, sim? Negócios só entre você e seu irmão.
— Deixa de orgulho, Mariá!
— Orgulho não.
— Orgulho sim.
Miquia insistiu, e insistiu, e insistiu, e... desistiu. Impossível deixar um centavo sequer na mão daquela mulher por cujos poros exalava um tipo de honestidade para ele desconhecida.
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Carinhosa, Mariá abraça apertado o cunhado, agradece comovida o que fizera por Rasec, deixa-lhe um beijo na testa. Miquia entra no carrão reluzente. Dá a primeira acelerada de volta à capital, mas ouve perfeitamente Mariá:
— Miquia, não é orgulho, viu? É...
O avarento grosseirão, de coração delicado, desacelera para ouvir de Mariá o resto que não veio.
É...
CARRANO, Márcia. Deixa, eu pago. In ____. Olhar de espanto. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2013, p. 27-32.