A primeira manhã

Espreguiçou, como sempre, e ergueu-se de um ímpeto. Na cidade alta, as manhãs friíssimas e a cama quentinha ameaçavam o pulo para a vida.

Já no banheiro, procurou no espelho amplo o rosto da véspera. Porém uma outra mulher a aguardava. Alguém meio fantasmagórica, de pálpebras excessivamente empapuçadas e pele macilenta. Assustou-se, ou melhor, horrorizou-se. Onde ficara a face de ontem?

Ontem, o que era ontem? Não conhecera Ralfe ontem mesmo? O primeiro beijo sob o guarda-chuva, molhados os dois. A boca máscula, mas macia e cuidadosa. O gosto, a sensação, a chuvinha gostosa, o primeiro toque de lábios, o primeiro homem eram um agora aconchegante e reconfortador. Até as grades da casa dos pais eram ainda agora:

— Me deixa, Ralfe, preciso entrar...

— Vai não, vai não — repetia dengoso.

— Se papai pega a gente assim...

— Molhados?

E sorri atrevido, puxando-a de volta.

Tudo agora, no entanto Corinha sabia que também era agora o Ralfe que não dormira em casa.Trinta anos, rápidos e longos. Felizes? Por que não?

Abarrotaram-se de filhos e objetos. Vivia com a sensação de que tudo era excessivo. Futilidades e mais futilidades. Também os filhos? Breves os encontros, longos os inúteis almoços de domingo que, sem uísque e vinho, seriam impossíveis. Reuniões em que a festa escondia o luto da distância. Essa, venenosa e ardilosa, fora se cavando entre todos. Mas não estavam sempre próximos? Principalmente nos últimos tempos. Os celulares, os e-mails, as uebecâmeras... por que distância?

Agora... o que fazer com a fêmea decadente, primeira vez encontrada no espelho. Acusadora, a outra vinha romper a harmonia a duras penas conquistada. E a acusava de quê? Não conseguia atinar.

— Amor, onde está?

O marido, chegando e gritando, tirou-a da posição estática em que se colocara no primeiro encontro com a mulher do espelho.

— Aqui! — gritou de volta.

Ouviu os passos apressados dele. Pela primeira vez, sentiu uma certa arrelia com o beijo distraído que o homem lhe jogou na boca seca.

— Você não imagina quanto me custou chegar aqui. Os aeroportos estão um caos completo. Voos cancelados. Filas.

Muda, Cora assiste.

— Mas sempre dou um jeito de voltar pra você...

Ela o interrompe:

— Já tomou café?

— Não, deixei pra tomar aqui.

E a vida lançou-se nos trilhos de sempre. Ou não?  

A partir dessa manhã, passou a implicar com as coisas de mais em gavetas, guarda-roupas, armários, garagens, cofres, salas, almoços, jantares — e, embora fingisse não perceber, também na cama deles. Bobagens, ah! melhor: tolices.

Intrigante processo se iniciou. Ia pegar um relógio e enxergava (o que jamais havia feito) os outros inúteis e fúteis e variados que restavam após a escolha de algum. Ia escolher talheres para um jantar de recepção e os de outros faqueiros pareciam lhe gritar do fundo das gavetas, das caixas. As roupas, pior ainda. Puxava um casaco de lã e os não escolhidos eram pura acusação, lamento doloroso de uma sociedade de excluídos cujos gritos, em momento algum, fizeram parte da vida da mulher.

Ralfe começou a ficar temeroso. Ela andava esquiva, demorando horas e horas para decisões banais, como o que comer, o que vestir, o que beber, o que fazer, que joia, vestido ou sapato usar, quem chamar para almoços e jantares, para qual dos filhos ligar, que bebida servir, que livro ler, que iogurte comprar, que sabão escolher, que tapete, que foto, que caneta... lista infindável.

O que essa mulher está escondendo? De que sabe? Do que não sabe? De quem ouviu algo? Ou não ouviu? O que quer? Ou não quer nada? Por que demora? Onde mora o perigo? Ou não há perigo? Quem é ela agora? Cadê a Cora risonha, aquiescente e calma? O que houve? Ou não houve? O que faço? Ou não faço? Saio? Ou não saio? E também infindável era a lista de Ralfe.

Agora a vida era diversa, e controversa.

O que a estranha, reflexo no espelho, fez comigo? Questão para a qual não conseguia encontrar resposta. Como chegavam as rugas assim tão violentas, a ponto de danificar o espelho de cada dia, amarrotando a lâmina afiada? A causa da desarmonia? A mulher se respondia sim. Logo depois se respondia não. A outra do espelho, visível, palpável, acusadora, a perturbava incessantemente, minuto após minuto. Cora continuava, no entanto, a viver. Apesar de, como diria Lispector.

Belo dia, Ralfe encontra uma fila — de pessoas — em frente da casa, bem no estilo de outras inúmeras, habituais no país. Mas não na porta da minha casa! Condomínio fechado, pô!

Irritadíssimo, pergunta a um dos filantes:

— Que faz aqui, cara, você e essa multidão?

— Num sabe, seu doutô? A mulher aí da casa pôs no jornal que era pra vir aqui, porque ia dar coisas pra gente...

Ralfe quase perde a pose de sempre quando, seguindo a trilha da fila, encontra no início dela Cora distribuindo roupas, talheres, cobertores, tapetes, joias, ele nem conseguia saber mais o quê. Ah! relógios. Os dela e os dele.

— Ficou louca, mulher?!

Tranquila, ela volta o rosto sereno e, depois de muito tempo sem fazer isso, sorri ao responder:

— Não vi você chegar.

— Me responde, anda! Ficou louca?

— Fique calmo. Sem confusão na frente das pessoas. Não fica bem.

Quase gritando, Ralfe engasga-se com um palavrão, no entanto mantém a pose:

— Deixe alguém aí e vamos entrar.

Cora obedece. No interior da casa, de nada adiantou o homem perguntar, perguntar, perguntar. Ela não respondeu, não respondeu, não respondeu.

A partir desse dia, continuou se livrando de todo supérfluo. Foi se despindo dos acúmulos. Tornou-se benemérita e elogiadíssima. Não sem antes ter passado pela pecha de louca na voz uníssona que foi se enfraquecendo à medida que o tempo passava. Acostumados todos aos gestos doadores da mulher, a vida voltou novamente aos trilhos de sempre. Da mesma maneira, Ralfe, tendo salvaguardado devidamente o patrimônio principal, retornou aos trilhos, que passavam por bancos, poltronas e camas.

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Espreguiçou, como sempre, e ergueu-se de um ímpeto. A manhã friíssima e a cama quentinha ameaçavam o pulo para a vida.

Já no banheiro, procurou no espelho amplo o rosto da véspera. Novamente, uma outra mulher a aguardava. Alguém assim calma, assim triste, assim magra, como nos versos da poetisa. Assustou-se, ou melhor, encantou-se. Mas se perguntou:

— Em que espelho ficou perdida/ a minha face?

Cecília intervinha entre ela e a estranha. A poesia era um gigantesco entre que se abria na manhã prosaica como todas as outras, inclusive aquelas em que se doara ao vazio, inclusive aquelas que passara distribuindo o excessivo ter pelo não ter de outros. Entretanto, difícil não se inquietar com a mesma questão que voltava: onde ficara a face de ontem?

Ontem, o que era ontem? Não conhecera Ralfe ontem mesmo? O primeiro beijo sob o guarda-chuva, molhados os dois. Aquela boca máscula, mas macia e cuidadosa. O gosto, a sensação, a chuvinha gostosa, o primeiro toque de lábios, o primeiro homem eram um agora aconchegante e reconfortador. Até as grades da casa dos pais eram ainda agora.

Não. Não. Isso não era mais ontem. Ontem era o amargo gosto de saber que Ralfe, mesmo quando ao alcance da mão, corpo quente roçando no dela sob o cobertor, não dormira na cama de mais de trinta anos. Em que ontem tudo começou? Em que excesso ficou perdido o que devia ter permanecido? Em que mesa, em que cama, em que banco, em que compra, em que carro, em que anel, em que conversa, em que hotel, em que motel, em que olhar ou não olhar, em que cuidar ou não cuidar, em que vida ou não vida, em que morte ou não morte, em que sim ou não sim, em que palavra ou não palavra, em que tempo ou não tempo? Ontem?

Não. Tudo agora, mas a mulher sabia que do mesmo modo era agora — e sempre fora — aquele entre que a poesia abrira para a memória. Um espaço que a fazia a estranha do espelho, mas igualmente a de ontem. Agora eram ainda aquelas outras estranhas que haveria de encontrar no espelho de cada manhã.

Sentiu que podia livrar-se da ideia de que também ela própria era uma futilidade — e inútil ficou o velho calibre 38 escondido debaixo do colchão partido.

Deu um salto abissal na poesia esparramada pelo espelho de todo dia. E tudo virou um imenso e aconchegante agora, sob medida para a vida dela.

 

CARRANO, Márcia. A primeira manhã. In ____. Olhar de espanto. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2013, p. 63-71.

 

                    

 

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